Quando se vai acompanhado a um restaurante e o maître oferece um cardápio para cada uma das pessoas na mesa, o que se pressupõe? Que os indivíduos podem ter preferências diferentes, é claro! Isso não significa a proibição do compartilhamento de gostos parecidos e que dois ou mais dos que confraternizam escolham os mesmos pratos. Por outro lado, ninguém haveria de impor seu paladar a quem ali estivesse, mas sugerir -- eis o limite -- a experiência da variedade para a formação de novas opinões ou a ratificação das impressões originais.
A lógica simplista do dia-a-dia, aquela que não envolve paixões ou alterações de comportamento, apenas o bom senso, presta-se, perfeitamente, como exemplo do que seria o ideário para o relacionamento entre grupos de distintas religiosidades. Contudo, a História prova que houve e há momentos em que civilizações subjugaram e subjugam as particularidades, umas das outras, em nome de uma falsa unidade, representante das crenças do lado mais poderoso. Retomando a comparação, seria como se o "país dos comedores de abóboras" impedisse os habitantes do "país dos comedores de chuchus" que se servissem do vegetal de sua preferência. Um nonsense incompreensível e inaceitável!
Religiões, entretanto, como "alma" da cultura humana, como origem e fim de uma complexidade que envolve muito mais que uma estima pessoal, são passíveis de avaliações bem mais profundas. Elas envolvem não apenas os sentidos biológicos, mas a própria estrutura que define o ser como ser, perceptor de si mesmo e da sua comunidade. São, portanto, indissociáveis dos contextos em que surgiram, embora permitam que as diversidades nelas encontrem sentido e as adotem, no todo ou em parte, como diretrizes para suas manifestações. Da mesma forma, um homem, pelo livre arbítrio, tem a faculdade de alterar, completamente ou parcialmente, a sua visão do mundo.
Considerando a impossibilidade da convergência integral para as mesmas crenças e aceitando, portanto, a manifestação de inúmeras religiões, na maioria das vezes convivendo próximas umas das outras, é imperativo que exista, senão a imponderável universalidade, pelo menos a aceitação de umas em relação às outras: mais que isso, a alteridade, proposta pelos estudos. É fato que a intolerância e a prescrição forçada de soluções alheias a realidades de onde elas não são oriundas, priva os indivíduos de exercerem, como prerrogativas legítimas, os atos de suas crenças. De expressarem, conforme as suas culturas, aquilo que moldou suas personalidades, ainda que o fenômeno da globalização tenha permitido a mobilidade desses cidadãos para alhures, em que suas culturas podem não ser predominantes.
O exercício da religiosidade situa o homem em seu próprio mundo, ainda que seu mundo físico, geográfico, não seja favorável para as suas crenças. Torna-o um cidadão mundial, possuidor de elementos da integridade religiosa de que faz parte, se as religiões estão espalhadas pela Terra e se o seu exercício é compartilhado pelas pessoas assim dispersas.
Apesar disso, a História também demonstra que a estreita ligação entre a religiosidade e o exercício social, especialmente nas práticas políticas, é um dos principais motivos para os conflitos entre nações e mesmo grupos distintos numa mesma sociedade. Não precisamos retornar à Idade Média ou qualquer outro tempo passado para confirmar que a intolerância religiosa é capaz de fazer suscitar ódios, temores e guerras. Mesmo em nossos dias, a interpretação literal de preceitos de religiões particulares, aliadas à capacidade militar de extremistas religiosos já demonstrou ser variável eficiente para levar o mundo ao caos e destruí-lo. É impossível haver paz quando as interpretações dos contextos das religiões particulares deixam de considerar a validade das crenças alheias, como no aludido exemplo da imposição de um paladar especial para quem nele não se satisfaz.
A paz, como cultura, só me parece factível na distinção clara entre as atribuições da religião e da política. A representatividade de um povo, nas mãos de quem pode controlar as armas, deve restringir-se a questões territoriais, regulatórias e de subsistência. Assim, defendo a autonomia do Estado em relação às religiões, na medida em que a alteridade, como sistema, parece objetivo utópico. Somente a característica laica da representatividade pode restringir as divergências aos assuntos que não tenham origem na manifestação religiosa.
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