quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Porquês

O tempo foi apenas um detalhe. Assumir este estado de espírito aconteceu naturalmente, num processo lento, reflexivo. Foi anunciado. Foi verbalizado. Nem os que achavam que me conheciam chegaram a acreditar nos tons de sinceridade. Parecia loucura ou extravagância, atitudes que sempre confundiram os interlocutores na avaliação das minhas esquisitices.

Talvez seja por esquisitice e também por extravagância que me ponho a tagarelar sobre isso. Não há por que um misantropo ser falastrão. Há? Quem sabe para encontrar quem o compreenda? É uma boa justificativa! Pensaria alguém que sinto prazer em ser como sou? Que a reserva que me imponho traz um tipo diferente de felicidade e que, por isso, deve ser respeitada? Ridículo!

Comparo-me a um pescador, que sabe da existência de um peixe raro no mar e que não descobriu, ainda, a isca apropriada para resgatá-lo. Péssima comparação, acrescento, pois não pretendo "consumir" os meus alvos, não quero prendê-los num aquário, quero sequer que eles gostem de mim, mas que dialoguem comigo! Que materializem seus pensamentos sem hipocrisia, ainda que julguem, por fraqueza da alma como a sociedade a molda, que isso iria me ferir.

O que maltrata não é a franqueza. O constrangimento vem do silêncio, do potencial de construção de verdades alternativas, o potencial desaproveitado. O rancor antecipado pelo julgamento que fazemos todos nós, misantropos, da impotência do espírito humano. A raiva, às vezes, até, de sermos inflexíveis, se existe a escolha de aparentar "normalidade".

Ponho, então, essa rede no mar. Lanço minhas garrafas desta ilha. Subo a colina e despejo os envelopes para que a brisa os leve.


Canção do vento e da minha vida


Manuel Bandeira
(de Estrela da Manhã, em Antologia Poética, org. Emmanuel de Moraes, José Olympio Editora, Rio, 1986)

O vento varria as folhas,
o vento varria os frutos,
o vento varria as flores...

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,
o vento varria as músicas,
o vento varria os aromas...

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos
e varria as amizades...
o vento varria as mulheres.

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
e varria os teus sorrisos...
o vento varria tudo!

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de tudo.

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