(*) Escrevi esse texto em 2007 com a intenção de dar a ele uma sequência. Não o fiz. Ele cabe, aqui, muito bem. Talvez, nesse novo contexto, um dia eu lhe ofereça um meio e um fim.
De olhos fechados, riu. Não escancararia as pálpebras para fora daqueles momentos conquistados com esforço próprio. Os que não dispensam emoções criadas por coisas como Lexotan, muitas vezes em doses mórbidas, costumam achar que os sacrifícios da viagem "limpa" anulam os efeitos do êxtase. Ele, porém, era um abstêmio: um mártir. Dores o perseguiam inclementes, mas não logravam arrancar-lhe um "ai" em socorro próprio.
Morilo ria, verdadeiramente, ao dormir. Dom e maldição.
O alheamento a tudo e a todos foi um presente da infância. Conquistou-o sem querer -- sem jamais desejá-lo, é bom que o diga. As manias de Morilo Nadarca bem poderiam ter sido herdadas, mas eu acredito que o ambiente e a criação ligaram e desligaram muitos dos genes que o definiram. Nascido em família amante das muitas letras e das poucas expressões, cresceu na companhia dos livros do pai. Das histórias do pai. Das idiossincrasias do pai.
Durante muitos anos, contemplou a desproporção entre a sua vida e o que existia "lá fora". Observou o mundo através dos vãos pequenos que abriu necessariamente e apenas o preciso para cumprir as obrigações temporais: frequentar a escola, fingir divertimento junto aos supostos amigos, vender os bolos fabricados pela mãe. Alimentou desejos intensamente, apesar de que jamais lhes deu atenção maior que o átimo em que duravam. Era muito bom nisso, preparado como foi pelo velho homem das letras. Os sonhos, a fantasia deliberada ou acidental, que o alimentava como uma droga, anestesiando seus sentidos para livrá-lo das dores da realidade, esses eram os caros e indispensáveis motivos por que se permitia viver.
Uma vez, acordou assustado, em plena madrugada, chorando um ódio amargo. Tinha dado vida, ao adormecer, a uma história que não conhecia, em que seu irmão deveria "pagar" por algo que fez, não entendia bem o quê. Contorceu-se por tempo demais, remoendo a desventura, até dar-se conta de que havia sonhado. Debochou de si mesmo e, feliz por não ter que ajustar contas com ninguém, o que o tiraria do imobilismo tranquilo, adormeceu com a intenção de sonhar outra vez.
Em outra oportunidade, descobriu, com enorme frustração, que não tinha o brinquedo que era muito seu durante o sono. O sentimento nunca o deixou, reduzindo as expectativas diante da própria vida -- se a vida, supunha, não respeitava as fantasias que não existiam para além dos sonhos.
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A meninice de Morilo foi marcada por uma inocência incomum para as crianças do seu tempo. A despeito das enormes doses de conhecimento que sorvia diligentemente, com um gosto que o transformava no garoto esquisito da rua, faltava-lhe um quê de experiência mundana. Certo dia, para testá-lo, um pirralho de sua turma juntou outros colegas e, cercando Morilo, perguntou-lhe em tom de galhofa:
-- Como nascem os bebês?
Eles conheciam a resposta, mas ouvir as explicações bizarras de Morilo era um divertimento impagável:
-- Ora, homem e mulher se casam, e então, depois de nove meses, nasce o bebê!
E as crianças se afastavam a gargalhar, plantando uma das muitas dores de sentimento no garoto assustado. Coisas como essa iam-se juntando em um bolo de ressentimentos no coração do menino. Foram precisos muitos anos até identificar, sozinho, que o pai tentara, do seu jeito, livrá-lo do peso do mundo. Um mundo mau, sujo, impróprio. Um mundo que, Morilo soubera, não se furtava o prazer de espezinhar os inocentes.
Ironicamente, a privação desse tipo de conhecimento, menos que protegê-lo, transformou-se no seu próprio estigma. O garoto estranho apanhava quase todos os dias, ao sair da escola, porque os colegas o viam como um "menos igual". Um vizinho, adulto, tentou abusar da sua confiança de modo perverso e fez com que todos soubessem disso, como um trunfo. Outro colega, em dia memorável, puxou seu calção diante das meninas e meninos em pleno recreio, na escola. Esses mesmos valentões e espertalhões não tinham pudores em exigir, em dias de prova, que Morilo lhes passasse "cola".
Ninguém o queria por perto. Ninguém o procurava para apenas conversar. Ninguém percebia que, no fundo da alma, aquela criatura era infeliz, sozinha e desprotegida.
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Invocou a morte muitas vezes, enquanto crescia. Clamou-a para si, mas também para os outros, intimamente e despudoradamente. Pediu sua assistência desculpando a si mesmo porque vira em seu rosto adolescente a desesperança de quem jamais pertenceria ao mundo. Não, pelo menos, àquele mundo.
Eis que se descobriu subitamente crescido. A carga de emoções que lhe competia, aos vinte anos, era alta, ameaçadora. Morilo as armazenou em um canto obscuro da alma. Lá estiveram ocupando, inertes por um tempo, um espaço da memória, onde, nas pessoas comuns, ficam guardadas as nostalgias. Para Morilo, reviver o passado era apenas um transtorno.
Num esforço maior que ele próprio, desculpou a si mesmo as futilidades pueris; amenizou a consciência carregada pelas mágoas e temores; permitiu-se, finalmente, ser personagem "igual", nas histórias em que se imiscuiu, sorrateiramente, como se não tivesse o direito delas participar.
Não é que os temores se dissiparam, nem que as cicatrizes tivessem desaparecido. Morilo entendeu que poderia sobreviver. Isso era, afinal, um tributo com preço mais acessível, na medida em que oferecia facetas cuidadosamente lapidadas da sua pseudoconsciência.
Restaram-lhe fragmentos esparsos de dor, que só não fazem mais sentido porque as perguntas não respondidas causam ainda mais aflição. Na essência, justificar o prazer dos sonhos conflita com a importância de trazer à luz as explicações do que lhe ocorreu, como insumo para as decisões futuras. Os sonhos futuros. Era preciso extrair da experiência as luzes de entendimento do que ele próprio havia se tornado e do que conviria para a auto-afirmação e a manutenção do ego, ou para a sucumbência do mito que para si autoproclamara.
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