quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O testamento (*)

(*) Mais um dos meus contos antigos. Pretendia ser um terror.


“Um, dois, três...” Começou, prudentemente, como quem espera encontrar um degrau falso no caminho. No portal, perto de onde as nuvens lançam carícias sobre a torre da construção, era onde o musgo parecia terminar. Úmido e escorregadio, grudado como pele no granito, fez o homem tropeçar mais de uma vez antes mesmo de contar vinte passos.

– Inferno! Bastava ser tarde! Onde esteve com o juízo, Simão, para aceitar vir aqui?

Mesmo o Tobias havia desdenhado da tarefa. “O maldito e ganancioso Tobias”, repetia entre os dentes, o advogado. “A intuição é conselheira, camarada! Não traço caminhos perpendiculares no rumo do dinheiro fácil”. O crápula parecia estar certo, mais uma vez!

Arquejou contra a elevação, roçando as pedras com a ponta dos dedos à procura do equilíbrio, carregando a mala de couro sintético puído nos cantos, arfando.

Quando o vento soprou mais forte contra seu corpo, trazendo o frio cortante que vem com a chuva gelada que parecia não demorar, deixou-se despencar sentado no degrau: “cento e quinze”!

Olhou sobre os ombros entrevendo, abatido, a fachada que se erguia à distancia de mais da metade do caminho.

– Se me levantar agora, farei meu próprio testamento!

O homem havia ligado pela manhã, mas a história não chegou primeiro à sua mesa. Aliás, ninguém parecia lembrar-se da sala à esquerda, no final do corredor, a menos que nenhum dos outros doutores da “Mendes & Associados” demonstrasse interesse pelo assunto. No começo, o homem alto e gordo digeriu razoavelmente a situação: era um novato, condição que herdou do Tobias. O contrato firmado com o dono do escritório, o senhor Adolfo Mendes, não exigia de si nenhuma cota de desempenho, mas era preciso sujar as mãos, de vez em quando. Além disso, ressentia-se do pouco dinheiro que tinha para comer, vestir-se e pagar o aluguel do quarto minúsculo, dividido com um gato, uma prateleira de livros de Direito e uma outra cheia das ficções de Perry Rodan – com que, aos trinta e poucos anos, ainda se divertia!

– Meu próprio testamento, é o que me espera!

Começava a temer que fosse representar um dos clichês de Hitchcock, num castelo cheio de portas rangentes e segredos perdidos dentro de cômodos trancados com a recomendação para que não fossem abertos. Talvez o trabalho que o esperava não tivesse relação com o testamento de um velho moribundo, ansioso para legar suas relíquias decadentes para um sobrinho distante ou um mordomo afetado. Não! Estava prestes a ser servido em retalhos temperados no molho do próprio sangue sobre a mesa de seres vampirescos, ávidos por sorvê-lo antes que perdesse o calor natural.

A ironia criada pela frustração da sua mente exausta, ligou em Simão alguns neurônios de autodefesa. Num súbito, entendeu que a escuridão começava a ser anunciada pelas últimas aparições do sol miúdo, através das nuvens agora carregadas e das copas das árvores que ladeiam a escadaria. “Uma verdadeira floresta”, admitiu o advogado. “Uma floresta povoada por pássaros de cantos risonhos e insetos saltitantes”.

Antes que pudesse reagir, as partes desprotegidas do enorme corpo de Simão foram tomadas por mosquitos, cujas picadas criaram protuberâncias instantâneas e doloridas. Quem sabe, eles estiveram ali desde o lapso em que desmoronou sobre os degraus e o fugaz delírio de há poucos momentos, mas, agora que os havia percebido, levantou-se a contragosto, espalmou contra os visitantes indesejados e ajeitou o paletó.

Olhou para baixo e depois para cima, duvidando que ambos os caminhos lhe reservassem as melhores opções. Não é que fosse um covarde. A dúvida era se conseguiria chegar ileso ao calor de uma lareira – se é que o anfitrião fosse dado a hábitos hospitaleiros – ou se a conveniência exigia atrasar o compromisso até o dia seguinte.

Pensou, então, na despensa vazia e nos comentários sarcásticos de que seria alvo no escritório e, como quem se conforma com o destino incômodo, aumentou o passo na direção do portal.

Seria capaz de trocar todas as brochuras de Perry Rodan pela capacidade de teletransportar-se uma única vez. Melhor: ele os trocaria, de boa vontade, por um guarda-chuva, eis que a garoa, que ainda resistia a completar o ambiente soturno da sua desventura, começou, finalmente, a cair.

Custaram-lhe vinte minutos para atingir a enorme entrada, onde duas gárgulas, encravadas no muro rochoso, o saudaram pouco amistosas.

A visão da propriedade não ajudou a confortá-lo. As trilhas que margeavam a grandiosa residência, atrás da qual despontava uma torre ainda mais alta, pareciam ter sido abertas por animais. Para ir do portão, previamente escancarado, até a porta gigantesca, fabricada em carvalho carcomido, atravessaria um matagal imenso. Não havia uma calçada para guiá-lo. No chão distinguiam-se, aqui e ali, os contornos baixos do que talvez tivessem, um dia, sido os limites de um jardim.

– Santo Deus! Seria impressionante encontrar um telefone lá dentro!

Pisando sobre as pedras que definiam os cercados das plantas, e assim, quase como a percorrer um labirinto sob a chuva, cada vez mais compacta, chegou, finalmente, à soleira, na entrada descomunal do castelo.

Postadas sobre duas colunas, uma em cada lado da porta, duas esfinges esculpidas em pedra observaram, com sua apatia estática, a chegada do intruso.

As portas, que não tinham fechaduras, estavam cerradas e ninguém acudiu às batidas de Simão. “Talvez por causa do barulho da chuva”, imaginou.

Empurrou-as timidamente e as fez ceder, sem dificuldade.

Gritou, mas não foi atendido.

Não havia luz no castelo, contudo, a réstia de sol permitiu divisar, em uma espécie de painel de bronze, uma tocha presa por armação em cuja base pendia um recipiente cheio de um óleo amarelado e espesso.

Tirando um isqueiro da pasta, cuidando para não encharcar os papéis, meteu fogo no óleo, que iluminou uma parte do grande salão. Acendeu a tocha.

Não gastou muito tempo para descobrir que sua presença, ali, era um fabuloso equívoco: os móveis, cobertos por panos que há muito deveriam ser brancos, não chegavam a contrastar com o piso, onde uma densa camada de poeira fornecia a tela para que os ratos nela gravassem os seus caminhos.

As paredes eram enfeitadas por dezenas de molduras de onde deveriam ter-lhes sido arrancadas as pinturas. Menos uma, na subida de uma escadaria.

Caminhou em direção da parede oposta, aproximando-se da obra de arte para mirar-lhe o conteúdo, curiosamente brilhante em relação às demais mobílias, de aparência ocre.

Foi andando e assimilando. Pouco a pouco. Repentinamente, ao compreender a cena estampada diante dos seus olhos, parou hirto.

Na tela, um distinto cavalheiro, empunhando uma tocha, estava a fitar um espelho. Atrás de si, refletidas, as imagens de duas gárgulas e duas esfinges, caminhando em sua direção.

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