terça-feira, 28 de setembro de 2010

A iniciação de Carlito (*)

(*) Conto escrito em 2007, em linguagem "de época": 1922 testemunha as desventuras de um aspirante a escritor, que é revelado em final surpreendente. Tudo invenção desta minha cachola, claro!


O ano era 1922. A cabeça de Carlito doía, pulsante, denunciando a rapidez descompassada dos batimentos cardíacos. Arfava muito, mas bem menos por causa da lesão, uma protuberância imensa que herdou de uma queda ainda mal compreendida. O sofrimento era de natureza íntima e começou antes mesmo de ser internado, inconsciente, com os cabelos empapados em sangue e terra.

Dona Zefinha, que o assistia no hospital, percebia tudo: os ais do corpo e os da alma, ainda que os pacientes nada falassem. Vestida num uniforme branco salpicado por tons multicores, provavelmente respingados das seringas, com seus conteúdos doloridos, a enfermeira aparentava um ar de alegria permanente. No apartamento 5 da Santa Casa, preparava com zelo os curativos e os medicamentos prescritos pelo doutor Severino. Nas trocas dos saquinhos de soro, que para Carlito poderiam ser menos frequentes, disparava a tagarelar.

– Vê as flores na cabeceira, querido? O dorminhoco não percebeu as visitas, não é? Pois estiveram aqui umas pessoas. O seu Raimundo e a dona Maria, sabe?  Trouxeram boas novas! Um tal de doutor Antônio está a vir para cá. Chegará à noite, não sei... Não faz mal! O importante é que você vai ser entrevistado hoje mesmo! É sobre uma promoção, não é meu bem? Pronto, está bom! Anime-se! Eu volto!

Como fizera o dia inteiro e desde que Carlito evoluíra do coma, Zefinha não esperou respostas. Cruzou cantarolante o recinto e o fechou batendo a porta atrás de si.

A indiscrição da matrona sorridente provocou-lhe uma fisgada nervosa que percorreu a espinha, desde embaixo, até findar com espasmos no pescoço, agora bem retesado por causa da notícia. Ondas de choque agitaram seus pensamentos, ainda pouco restabelecidos depois da surpresa de acordar sobre a maca, desajeitadamente inclinada –  para “facilitar a circulação”, repetia a Zefinha.

Um mês atrás, havia sido procurado pelo Antônio Maria Bueno,  em resposta à carta que lhe enviou, solicitando a avaliação do seu trabalho. Não se tratava de uma promoção, como intuiu a enfermeira, mas o encontro poderia acelerar os projetos do rapaz. Aos vinte anos, Carlito produzia escritos de estilo que despontava naqueles tempos e de que se tornou defensor. Ele mesmo admitia,  porém, a audácia do conteúdo.

Antônio Bueno, diretor-editor da “Globo e Letras”, era representante dos maiores  literatos brasileiros e abrigava, sob a sua “Casa de Papéis”, os mais importantes compêndios de escritores contemporâneos, além de deter os direitos de publicação da obra de Fernando Pessoa, António Alves Martins e muitos outros.

A resposta que enviou a Carlito chegou-lhe em papel lacrado com cera, em envelope de alta gramatura. Muito caro, decerto. As mãos trêmulas do jovem mal deram conta de abri-lo sem rasgar a própria carta:

“Meu senhor, escrevo-te pela intercessão do genial Manuel Bandeira, que teve a oportunidade de passar os olhos em folhetins com escritos teus. Confesso-te a surpresa do pedido, mais por causa de quem o formulou do que o que pude extrair da tua pena. Se conheces, como suponho, o nosso trabalho, entenderás como nos sentimos honrados pela preferência de autores com a envergadura do teu amigo, em cuja verve prezam o uso clássico do discurso, do vernáculo e da construção frasal.

Não terei, contudo, a ousadia de negar-te o pleito, porque não me apetece desagradar o ilustre cliente que está a recomendar-te. Rogo que aceites o convite para estares comigo no “Café Parnasiano”, às dezessete horas do dia quinze próximo, quando poderemos divagar sobre as tuas intenções para conosco. Sinceramente, Antônio Maria Bueno, ao teu dispor”.

À lembrança sucederam os arrepios. Como, então, que Manuel Bandeira houvera dele conhecimento e, não fosse o bastante, tivera dado a si o desconforto de suplicar em favor de tão modesta causa? Não fora a sua própria pena que redigira a carta e sua determinação que a fizera chegar ao pedante e influente editor?

Uma ponta de dor o fez levar a mão à cabeça coberta por faixas. Deu-se conta de que não havia repassado, ainda, os momentos que antecederam o estranho acidente.

O sol andava no rumo de deitar-se no dia 15 de agosto de 1922 e o relógio, sacado da algibeira, sentenciou um atraso embaraçoso. Estava a quinze minutos de apresentar-se no “Parnasiano”, distante cinco quarteirões dali, e mal se recompusera, física e mentalmente, de uma tarde estafante.

Meteu os papéis na pasta de couro com a sensação desconfortável de tê-los confundido. Para recuperar-se do apavoramento, obrigou-se a sentar por um minuto e refez, de maneira adequada, os preparativos para a reunião. Repetiu mentalmente a ordem de que não haveria de parecer tímido – por improvável quanto isso fosse – na presença do representante da Globo e Letras. Não permitiria, especialmente, ser alcançado por argumentos desabonadores à sua capacidade de dar vazão à escrita, oriundas dos turbilhões de sentimentos que invariavelmente o acudiam.

Fechou os olhos por um segundo e deixou que as imagens saltassem da memória: a infância na roça; o auto-exílio da companhia humana; o respeito pela natureza; o gosto pelos livros; a doença que o abateu na adolescência. E o prazer do sofrimento. O divertido e producente hábito de sofrer, que ainda cultiva; força que dá vida à mão que segura a pena e que o impede, por paradoxo, de querer deixar de sofrer!

Sentiu-se revigorado e então levantou. Correndo, atravessou os cômodos que o separavam da rua. Percorreu duas avenidas quase que sem perceber a rotina do mundo à volta. Na ladeira seguinte, vislumbrou o carro em aproximação. A contragosto, freiou o corpo para dar-lhe passagem, mas descobriu-se a lançar um voo inesperado na direção da carruagem.

Acordou na Santa Casa há dois dias com dores múltiplas, mas nenhuma tão acintosa quanto a que morava em sua cabeça, agora.

Se tivesse mais confiança em Deus – e no passado Deus soube quanto houvera n’Ele confiado –, seria capaz de atribuir o incidente à Providência divina, pronta para livrá-lo de caminhos ruins. Agora, seria, mais uma vez, o momento da Sua intervenção, já que o demônio o espreitava de novo, na máscara do vaidoso e limitado crítico da sua arte.

A porta abriu ruidosa, nem tanto por causa dela mesma. Era Zefinha, que viera roubar-lhe das recordações.

– Trago-lhe uma surpresa, Carlito!

Viu primeiro os sapatos brilhantes adentrando sem cerimônia. O paletó cortado sob medida teria custado mais que um ano inteiro da arrecadação de Carlito. O chapéu, fino e distinto, só vira iguais, até então, em películas importadas da Europa e que assistira uma ou duas vezes pela curiosidade de que logo se fartou.

O homenzinho de bigode bem tratado foi cordial.

– Pregou-nos uma peça e tanto, senhor Drummond! Estava a imaginar o que diria ao Bandeira se não te visse de olhos abertos!

Um silêncio muito grande encheu as faces dos homens. Poder-se-ia imaginar que a conversa terminara antes que houvesse um início. Carlito contorceu-se para melhor encarar o outro. Franziu o cenho numa evidente demonstração de dor, que poderia passar como consequência do gesto, mas na verdade a dor estava na alma. Mediu as palavras e as disse:

– Peço-lhe que desculpe a inconveniência do meu infortúnio, senhor Antônio. Suplico-lhe, também, que não considere mais as minhas intenções. Sou-lhe grato pela distinção, mas provarei os meus próprios caminhos.

A incredulidade estampada na face do Antônio foi substituída por um largo sorriso – Carlos o traduziu como manifestação de alívio. A partir daquele momento, já não ouvia conscientemente as vozes da sala, porque um delírio, certamente produzido pelo remédio de Zefinha, começara a minar-lhe a consciência. Recordara depois, vagamente, da pergunta do homem: “que mal houvera caído sobre ti, afinal, que te fez prostrar-te deste modo, senhor?” Zefinha, percebendo o transe que abateu Carlito, respondeu com palavras que representavam a literalidade dos fatos mas que, para ele mesmo, significaram, profundamente, o que vivera naqueles últimos dias:

– O doutor não soube? Foi tombo! No meio do caminho tinha uma pedra!

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